MUDANÇAS CLIMÁTICAS E BARREIRAS COMERCIAIS

8 de março de 2022

Artigo publicado no Jornal Valor Econômico, em 03/12/09

O debate sobre mudanças climáticas e as medidas para lidar com elas trazem consigo inevitáveis repercussões no comércio internacional. A adoção unilateral de compromissos de redução de emissões de gases efeito estufa se faz em geral acompanhar de medidas comerciais de equalização das condições de concorrência entre produtos importados e nacionais. No entanto, essas medidas podem adquirir um caráter protecionista e se contrapor às normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). A melhor forma de lidar com esse potencial conflito de normas é fortalecer o regime internacional de proteção ao clima pela via multilateral.

Ao final da 13ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-13), realizada em Bali, em 2007, os países signatários da convenção comprometeram-se a iniciar esforços adicionais para a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera.

O Plano de Ação de Bali caminhou paralelamente às negociações sobre o segundo período de compromisso do Protocolo de Quioto (após 31/12/2012), que traz metas de redução de emissões para os países desenvolvidos, com exceção dos EUA, que não ratificaram o acordo.

A 15ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (COP-15) e a 5ª Reunião das Partes do Protocolo de Quioto (MOP-5), que ocorrerão em Copenhague a partir do próximo dia 07 de dezembro, devem fechar essa rodada de negociações iniciada em 2007.

Ao longo da construção do regime internacional de proteção ao sistema climático, agrupamentos regionais, governos nacionais e locais passaram a regular a temática ambiental nas suas legislações, refletindo, de um lado, a preocupação com o aquecimento global e, de outro, a necessidade de marcarem suas posições.

Em 2003, a União Européia instituiu o Esquema Europeu de Emissões para auxiliar seus países membros a alcançarem as metas de redução de emissões estabelecidas no Protocolo de Quioto – média de 8% em relação ao ano-base de 1990. No início de 2009, a União Européia deu um passo além do consenso global e fixou unilateralmente meta de redução de 20% em relação aos níveis de 1990, até 2020, e de 60-80%, até 2050.

Nos Estados Unidos, tramita no Congresso o projeto de lei Waxman-Markey, que pretende instituir uma política nacional de segurança energética e energia limpa. A proposta prevê metas de redução de emissões de gases de efeito estufa de 17% em relação a 2005, até 2020, e 83% em relação ao mesmo ano base, até 2050. O projeto propõe a criação de um sistema de cap-and-trade federal, ou seja, a imposição de limites de emissões e a instituição de mercado de comercialização de créditos gerados a partir dos excedentes de redução.

Ao adotar essas regras, os países desenvolvidos se sentem tentados a impor medidas de correção dos preços dos produtos importados ou de adaptação a padrões ambientais mais rígidos. Entre essas medidas estão os chamados border tax adjustments, que nada mais são do que sobretaxas aplicadas aos produtos importados não sujeitos às mesmas restrições ambientais em seus países de origem.

Medidas comerciais desse tipo tendem a ser especialmente prejudiciais para os países em desenvolvimento. Primeiro porque suas empresas enfrentarão maiores dificuldades para exportar. Segundo porque, para manter a competitividade exportadora, essas empresas serão forçadas a adaptar seu processo produtivo, sem contar com os mesmos incentivos e instrumentos disponibilizados pelos países ricos.

Os efeitos das políticas ambientais unilateralmente adotadas já começam a aparecer. O Esquema Europeu de Emissões prevê que, a partir de 2013, qualquer vôo que decole da Europa ou pouse naquele território deverá cumprir suas regras internas de redução de emissões. Além disso, a Diretiva Européia que visa promover a utilização de energia proveniente de fontes renováveis estabelece que considerações de ordem ambiental, social e econômica influirão nas medidas relativas à importação de biocombustíveis. Nos EUA, o projeto de lei Waxman-Markey já prevê imposição de tarifas a produtos importados ou a exigência de que esses bens se sujeitem ao sistema de cap-and-trade.

Apesar da tentativa de legitimá-las com argumentos ambientais, essas medidas podem adquirir contornos protecionistas e ser contestadas à luz dos acordos da OMC. Entre as regras comerciais potencialmente violadas estão as proibições de produtos estrangeiros serem tributados em excesso à tarifa de importação consolidada no âmbito da OMC ou de serem onerados com taxas, tributos ou exigências internas às quais os produtos nacionais não estão sujeitos. Além disso, a possibilidade de adoção de medidas necessárias à proteção da vida humana, da fauna e da flora e à conservação de recursos naturais, prevista no art. XX do GATT, está condicionada a que não constituam “restrições disfarçadas ao comércio internacional”.

Ressalva semelhante é estabelecida pela própria Convenção do Clima, que determina que as medidas de combate a mudança do clima não devem constituir meio de discriminação arbitrária ou injustificável ou restrição velada ao comércio internacional.

Além de contrariar princípios fundamentais dos regimes regulatórios tanto do comércio quanto da proteção ao clima, a adoção de medidas protecionistas em legislações ambientais desconsidera as maiores dificuldades de adaptação dos países em desenvolvimento a padrões ambientais mais rígidos.

Nesse cenário, ganha relevo a busca por um acordo em Copenhague. A falta de um consenso global sobre o nível de comprometimento de cada país com a redução de emissões, além de não ajudar no avanço da causa ambiental, aumenta a probabilidade de disputas na OMC quanto à compatibilidade com as regras multilaterais do comércio de certas medidas comerciais inseridas nas legislações nacionais ou regionais sobre mudanças climáticas. Cabe aos líderes mundiais evitar um desfecho como esse.


Por Rabih A. Nasser* e Daniela Stump

Por Pinheiro Pedro Advogados 23 de outubro de 2025
Sancionada pelo Presidente Lula agora no mês de outubro, a Lei nº 15.228/2025, que institui o chamado Estatuto do Pantanal , é o primeiro marco legal federal voltado especificamente à conservação, restauração e uso sustentável desse bioma único. A matéria segue agora para sanção presidencial, marcando um passo histórico no arcabouço jurídico-ambiental brasileiro. Um vácuo jurídico que se encerra Apesar de o artigo 225 da Constituição Federal reconhecer o Pantanal como patrimônio nacional, até então inexistia legislação federal exclusiva que tratasse de sua proteção. A lacuna vinha sendo preenchida pela aplicação de normas ambientais gerais ou por legislações estaduais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa ausência gerava insegurança regulatória e dificuldades de harmonização entre as práticas produtivas, a conservação ambiental e o desenvolvimento socioeconômico. Em 2024, inclusive, o Supremo Tribunal Federal (STF) havia determinado que o Congresso legislasse sobre o tema, pressionando pela criação de um marco normativo específico. O que dispõe o Estatuto do Pantanal A nova lei inova ao estabelecer diretrizes próprias para o bioma. Entre seus principais pontos, destacam-se: · Uso sustentável e compatível : qualquer atividade econômica no Pantanal deverá atender a critérios de sustentabilidade, prevenindo a exploração predatória. · Manejo do fogo : a utilização do fogo passa a ser permitida apenas em situações específicas, como prevenção de incêndios, pesquisas científicas, manejo integrado e práticas culturais de comunidades tradicionais. Em todos os casos, é necessária autorização prévia do órgão ambiental competente e apresentação de plano de uso. · Selo “Pantanal Sustentável” : cria-se um mecanismo de certificação para bens e serviços produzidos de forma sustentável, inclusive em atividades turísticas, agregando valor econômico às práticas compatíveis com a conservação. · Financiamento e incentivos : o texto prevê o uso de recursos do Fundo Nacional do Meio Ambiente, doações e fundos patrimoniais para custear programas de conservação e pagamento por serviços ambientais. · Integração federativa : as metodologias e regulamentos já adotados por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul poderão ser aproveitados, evitando sobreposição de normas e valorizando experiências consolidadas. · Valorização cultural : reconhece o uso tradicional do fogo e práticas ancestrais de comunidades pantaneiras, respeitando sua identidade e modo de vida. Relevância jurídica e socioambiental A aprovação da lei representa não apenas um avanço regulatório, mas também um marco simbólico: é o reconhecimento, em nível federal, de que o Pantanal demanda tratamento diferenciado e normatização específica. Para o setor jurídico, a norma tende a reduzir conflitos de interpretação, já que muitas vezes atividades lícitas sob a ótica estadual esbarravam em entendimentos mais restritivos de normas federais gerais. Agora, o Estatuto confere maior segurança jurídica a empreendedores, comunidades e órgãos ambientais. Além disso, a criação do selo de certificação pode estimular cadeias produtivas sustentáveis, conectando conservação ambiental com ganhos econômicos. Do ponto de vista internacional, a medida também reforça a imagem do Brasil como país comprometido com a preservação de seus biomas, o que pode gerar reflexos positivos em acordos comerciais e ambientais. Vem desafio por aí! Apesar dos avanços, a efetividade da lei dependerá de fatores cruciais: 1. Estrutura de fiscalização : a legislação só terá efeito prático se houver capacidade de monitoramento, o que exige fortalecimento institucional nos estados e na União. 2. Recursos financeiros contínuos : sem repasses estáveis e planejamento orçamentário, os instrumentos de incentivo podem se tornar meramente declaratórios. 3. Harmonização normativa : será preciso compatibilizar as regras federais com legislações estaduais já vigentes, evitando conflitos de competência e sobreposição de obrigações. 4. Regulamentação detalhada : conceitos como “uso sustentável” e “manejo controlado” precisam ser devidamente definidos em regulamentos, sob pena de abertura para litígios e judicializações. 5. Participação social : a efetividade dependerá do envolvimento de comunidades tradicionais, produtores locais e entidades da sociedade civil, garantindo legitimidade e adequação às realidades regionais. Finalizando, podemos considerar que a criação do Estatuto do Pantanal encerra uma lacuna histórica e inaugura um novo ciclo de políticas ambientais para o bioma. Contudo, como ocorre em muitas áreas do direito ambiental, a distância entre a norma e a realidade prática ainda é significativa. Cabe ao Poder Público assegurar meios para a execução da lei e à sociedade civil acompanhar e fiscalizar sua implementação. Já ao setor produtivo e às comunidades locais, abre-se a oportunidade de alinhar desenvolvimento econômico com práticas sustentáveis, construindo um modelo de gestão que preserve o patrimônio natural e cultural pantaneiro. Em última análise, trata-se de um avanço normativo que precisa ser consolidado por meio de ação coordenada, financiamento estável e efetiva fiscalização , sob pena de transformar-se em um marco legal sem efetividade prática.
Por Pinheiro Pedro Advogados 23 de setembro de 2025
Em abril de 2025 foi sancionada a Lei nº 15.126, que acrescenta ao marco legal do Sistema Único de Saúde (SUS) o princípio da atenção humanizada. A norma representa um avanço no campo legislativo da saúde pública ao reconhecer, de forma expressa, que o atendimento ao paciente deve considerar não apenas aspectos físicos, mas também dimensões emocionais, subjetivas e sociais que compõem o cuidado em saúde. O que diz a lei A nova legislação altera a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), reforçando que os serviços do SUS devem ser pautados pela atenção integral e humanizada. Na prática, isso significa que o Estado assume o dever de assegurar que o tratamento não se limite à prescrição médica ou ao controle de sintomas, mas envolva também: acolhimento adequado às necessidades do paciente; respeito à dignidade e singularidade de cada indivíduo; valorização da escuta, do vínculo e da participação do paciente no próprio cuidado; promoção de políticas públicas que reconheçam a saúde como fenômeno biopsicossocial. Mudanças práticas Embora o princípio da humanização já estivesse presente em políticas do Ministério da Saúde — como a Política Nacional de Humanização (PNH) —, sua inclusão em lei fortalece o caráter jurídico da obrigação. Isso cria: maior respaldo legal para usuários do SUS que se sintam desrespeitados ou vítimas de atendimento desumanizado; parâmetro normativo para o Poder Judiciário em casos de litígios envolvendo negativa de atendimento, internações e tratamentos; obrigação mais clara para gestores públicos e profissionais de saúde no planejamento e execução dos serviços. Em especial na área de saúde mental, a lei reforça a diretriz da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001), garantindo que pessoas em sofrimento psíquico recebam tratamento digno, baseado em cuidado integral e não apenas em medidas medicalizantes ou hospitalares. Impacto nos planos de saúde privados Embora a Lei nº 15.126/2025 se destine diretamente ao SUS, seus efeitos podem ultrapassar o sistema público. Isso porque: Parâmetro interpretativo: princípios reconhecidos em lei costumam ser invocados pelo Judiciário como referência também para a saúde suplementar. Assim, pacientes de planos de saúde podem se valer do conceito de atenção humanizada em ações judiciais para exigir tratamentos mais abrangentes e respeitosos. Pressão regulatória: a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) pode, futuramente, adotar resoluções que alinhem os planos privados às diretrizes de humanização, acompanhando a evolução normativa do SUS. Proteção do consumidor: pelo Código de Defesa do Consumidor, operadoras de saúde devem prestar serviços adequados, eficientes e seguros. A incorporação do princípio da atenção humanizada ao ordenamento pode reforçar o entendimento de que a ausência de acolhimento digno configura falha na prestação do serviço. É bom refletir A inclusão do princípio da atenção humanizada no marco legal da saúde brasileira consolida uma tendência: reconhecer que o cuidado deve abranger corpo, mente e contexto social. Para pessoas em vulnerabilidade psiquiátrica, esse respaldo jurídico é ainda mais significativo, pois assegura a possibilidade de reivindicar atendimento digno e integral em momentos de fragilidade. No campo da saúde suplementar, embora a lei não imponha obrigações imediatas aos planos privados, cria bases para que a humanização se torne parâmetro também na iniciativa privada, seja por via judicial, seja por futuras normativas regulatórias. Neste Setembro Amarelo, quando se intensificam as reflexões sobre saúde mental e prevenção do suicídio, a sanção dessa lei ganha relevo adicional. Ela reafirma que o direito à saúde não se limita ao tratamento de doenças, mas envolve o acolhimento humano, a escuta atenta e a valorização da dignidade em todas as etapas do cuidado. Assim, a Lei nº 15.126/2025 não apenas fortalece o SUS, como também abre caminho para uma visão mais ampla e inclusiva do direito à saúde, em sintonia com os desafios contemporâneos da saúde mental e com a urgência de políticas públicas sensíveis à condição humana.
Por Pinheiro Pedro Advogados 17 de setembro de 2025
Nos últimos anos, a digitalização tem impactado diversas áreas da vida social e econômica, e o Direito não é exceção. Um exemplo recente desse movimento é o crescimento do interesse por testamentos digitais e pela utilização de ferramentas tecnológicas no planejamento sucessório em vida. O que é o testamento digital? O testamento, em sua essência, é o ato jurídico pelo qual uma pessoa dispõe de seus bens, direitos e vontades para depois de sua morte. A versão “digital” desse instituto refere-se a disposições de última vontade elaboradas e registradas por meio eletrônico, seja em plataformas digitais, seja em documentos armazenados em nuvem ou em dispositivos pessoais. Ainda que a expressão “testamento digital” seja cada vez mais mencionada, é importante destacar que a legislação brasileira não possui, até o momento, uma disciplina específica sobre o tema. Isso significa que, para que o documento tenha validade jurídica, é necessário observar as formas tradicionais de testamento previstas no Código Civil: o público, o cerrado e o particular. Assim, ainda que o conteúdo esteja armazenado em meio digital, o instrumento precisa respeitar os requisitos legais – como testemunhas, formalização em cartório ou escritura pública, a depender da modalidade escolhida. Patrimônio digital e novas questões jurídicas Além da disposição de bens materiais, a era digital trouxe à tona um novo campo de debate: o patrimônio digital. Perfis em redes sociais, contas em plataformas de streaming, acervos digitais, criptomoedas e demais ativos virtuais passaram a fazer parte da sucessão. A destinação desses bens imateriais levanta desafios jurídicos, uma vez que a legislação atual ainda não trata de forma detalhada a sucessão de direitos digitais. Planejamento sucessório em vida Paralelamente ao testamento, observa-se o crescimento da prática do planejamento sucessório em vida. Trata-se da adoção de medidas jurídicas que permitem organizar previamente a transferência do patrimônio, assegurando clareza e reduzindo riscos de litígios entre herdeiros. Instrumentos como a doação em vida, a constituição de holdings familiares, pactos sucessórios e outros mecanismos podem ser utilizados dentro dos limites legais. Além de oferecer maior previsibilidade, o planejamento sucessório contribui para a preservação da harmonia familiar e pode, em alguns casos, otimizar aspectos tributários relacionados à transmissão de bens. Desafios e perspectivas O cenário atual evidencia um paradoxo: de um lado, há uma demanda crescente por soluções digitais voltadas à sucessão patrimonial; de outro, existe uma lacuna normativa que ainda demanda regulamentação específica. Nesse contexto, é essencial que a sociedade e os operadores do Direito acompanhem as mudanças tecnológicas, ao mesmo tempo em que respeitam os marcos legais vigentes. Enquanto o legislador não estabelece regras próprias para o testamento digital, o caminho seguro é alinhar as inovações tecnológicas com os formatos já previstos no Código Civil. Assim, garante-se que a manifestação de vontade tenha validade e eficácia jurídica.