NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS: UM “CÓDIGO” POUCO INSPIRADO

1 de novembro de 2021

NOVA LEI MIRA MAIS NA ADMINISTRAÇÃO QUE NOS LICITANTES


O direito, se não for o melhor lugar, é um dos mais fáceis para podermos observar a concretização da expressão “nada é para sempre”. Seu mundo está em constante transformação, e aquilo que outrora era sinônimo de vanguarda, muitas vezes, passa a ser obsoleto. Poderíamos justificar esse fato por ser o direito uma ciência social, mas vai além disso. Muitas vezes acontece por mudança de direcionamento do Governo, por pressões ou necessidade de adequações do diploma legal.

Pois bem, o objeto de estudo do presente artigo não é aprofundar porque as mudanças acontecem, mas sim, tratar de uma alteração em especial – da já tradicional Lei de Licitações e Contratos.

Até abril de 2021, ao mencionar licitações e contratos, quase automaticamente nos vinha à mente a, já famosa, lei nº 8.666/93, com suas virtudes e defeitos já conhecidos de cor.

Além de unificar diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais que tutelavam os procedimentos licitatórios e os contratos administrativos (só na esfera federal, tínhamos mais de 283 normas versando sobre licitações e contratos), o novo estatuto abrange também aspectos relacionados ao controle interno e externo das aquisições de bens e serviços por parte do Estado, o que o torna um verdadeiro Código de Licitações e Contratos.


O cenário no qual surge a Lei nº 14.133/2021 é o de diversas críticas ao regime anterior, da Lei nº 8.666/1993, que, só para se ter uma ideia, trazia originalmente 12 hipóteses de dispensa de licitação e hoje contempla mais de 30, numa tentativa de contornar os procedimentos licitatórios 1.

Ao se buscar corrigir os problemas práticos decorrentes da Lei nº 8.666/1993, foram sendo promovidas alterações, conforme se verificava algum problema nova correção era processada, desde a sua promulgação, ela restou modificada 225 vezes (a última promovida pela Lei nº 14.130/2021) e ainda assim continuava problemática 2.

Isso tudo sem contar as normas contidas nas Leis nº 10.520/2002 (pregão) e nº 12.462/2011 (RDC), que também procuraram corrigir falhas contidas no regime “geral” da Lei nº 8.666/1993.

Recentemente, com a pandemia da Covid-19 os problemas da Lei nº 8.666/1993 foram agravados e ela se mostrou ineficaz para atender às demandas da Administração Pública, razão pela qual foi criado um regime jurídico, excepcional, de emergência sanitária por meio das Leis nº 13.979/2020 e nº 14.124/2021 para afastar sua incidência.

Diante de tudo que foi colocado até aqui, uma pergunta resta inevitável: A nova lei de licitações e contratos, esse “verdadeiro código”, avançou, ou traz os velhos problemas do diploma anterior?

Não há uma resposta simples e direta para tal pergunta, pelo fato de que muito embora traga várias novidades, a nova Lei de Licitações não descartou por completo o regime anterior; tratou-se de uma tentativa de aperfeiçoar o modelo, unificando, como já dito, diversas normas legais, regras infralegais, positivando entendimentos do Tribunal de Contas da União (TCU) e acolhendo lições da doutrina.

Os grandes avanços do diploma em questão dizem respeito ao controle os órgãos e entidades públicas devem instituir sua política de governança, implementando processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, nos termos do Art. 11, p. ú.

“Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações” 3.

Notadamente, a governança se mostra ínsita à nova Lei e transmite seus mecanismos de liderança, estratégia e controle em todo o texto, a fim de avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão das contratações públicas, objetivando que as aquisições agreguem valor ao negócio fim de cada órgão e entidade pública.


De igual modo, a Lei em questão traz uma quantidade considerável de novos princípios para reger as licitações e os contratos administrativos, também relacionados, direta ou indiretamente à governança. Os novos princípios estão grifados abaixo, no trecho do artigo 5º do seu texto:

Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) 4. (grifo acrescido)

Nessa linha, podemos citar como exemplos de impactos da Lei nº 14.133/2021 nos órgãos de controle: a) atribuição expressa de competência ao órgão de assessoramento jurídico da Administração para realizar o controle prévio de legalidade de contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos (artigo 53, § 4º); b) submissão das contratações públicas a três linhas de defesa integradas por servidores e empregados públicos, agentes de licitação, autoridades que atuam na estrutura de governança, unidades de assessoramento jurídico, unidades de controle interno, pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas (artigo 169, I, II e III); c) obrigatoriedade de adotar medidas de saneamento em caso de constatação de impropriedade formal, (artigo 169, § 3º, I); d) imposição legal de levar em consideração as razões apresentadas pelos jurisdicionados e os resultados obtidos com a contratação (artigo 170); e e) garantia de dialética e de imparcialidade na fiscalização (artigo 171, I e II) 5.

Pois bem, embora seja, inegavelmente, um avanço tornar mais eficaz e eficiente os processos licitatórios no país sob os aspectos das boas práticas de governança, esse aspecto não basta para que a Lei, como um todo seja considerada um avanço.

Outro ponto positivo, é a sua aplicação em âmbito nacional, diferente do que acontecia sob a égide do regime anterior, Estados, Distrito Federal e os Municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para execução da nova lei, medida que conferirá uniformização na aplicação das normas e, também, da atuação dos agentes públicos envolvidos nos procedimentos licitatórios.

Porém, onde pouca coisa mudou, e o que mudou não trouxe grande impacto foi no tocante às modalidades de licitações. Além das já existentes, quais sejam, concorrência, pregão, concurso, e leilão, a Lei traz uma nova modalidade, o diálogo competitivo. Outrossim, extinguiu o convite, a tomada de preço e o RDC. Além disso, pelo regime anterior, a modalidade da licitação era definida ou pelo valor estimado da contratação ou pela natureza do objeto. A partir de agora, o que define a modalidade de licitação é apenas a natureza do objeto.


Quanto à novidade introduzida pelo diploma em questão, o chamado “Diálogo Competitivo”, pode ser caracterizado como modalidade de licitação para a contratação de obras, serviços e compras em que a administração pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos; é restrita a contratações em que a administração vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições: a) inovação tecnológica ou técnica; b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela administração.

Esse instituto pode até tentar se vender como inovador, mas, na prática, se trata de uma espécie de Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) 6, ainda um tanto obscura. Ademais, o sucesso dessa nova modalidade dependerá da união de dois fatores distintos: por um lado, que os órgãos da Administração criem um ambiente que promova segurança jurídica para as empresas, com ações pautadas em transparência e publicidade, atuando de forma técnica e eficiente na condução das negociações, e, por outro, que as empresas atuem com diligência e levem soluções efetivas para as negociações, a fim de que sejam vistas como efetivas colaboradoras nos diálogos. Ainda nesse ponto, cumpre ressaltar que o PMI tradicional é um instituto previsto na nova Lei de Licitações, no Art. 81 do diploma.

Além da modalidade nova, houve algumas outras alterações pontuais, como a utilização de rito idêntico para o pregão e para a concorrência (Arts. 17, VI e 29, por exemplo), introdução nas contratações em geral de dois critérios de julgamento de propostas que só eram utilizados no RDC: maior desconto e maior retorno econômico (Art. 33, II e VI), entre outras.

Porém, a única mudança efetivamente relevante para os licitantes, capaz de gerar impacto real é a possibilidade de saneamento de irregularidades na licitação (Arts. 59, I e 71, I), o que, para um novo diploma de licitações e contratos, é muito pouco.

A ideia que a timidez nas inovações nos transmite é que o legislador se preocupou com os escândalos de corrupção, o que é louvável, mas não ouviu atentamente a todos os interessados nos certames, pois que diversas questões apontadas de forma recorrente, pelo setor privado, como a disputa entre priorizar produto nacional mais caro ou estrangeiro mais barato acabaram sem solução na novel legislação.

Desse modo, podemos concluir que, embora tenha avançado em alguns aspectos, principalmente relacionados à governança, simplificação e uniformização do procedimento licitatório, a nova Lei de Licitações e Contratos se preocupou muito mais com a Administração do que com os licitantes, deixando muitos desafios para o futuro e, sem sombra de dúvidas, assim como ocorreu com sua antecessora, acabará necessitando de aprimoramento com o passar do tempo, desafio que ficará à cargo do Poder Legislativo, restando apenas saber se a falta de inspiração que apareceu no texto original não irá comprometer a celeridade nas tão esperadas e necessárias mudanças, quando essas forem outra vez demandadas perante o legislativo.


Notas:

  1 – De acordo com pesquisa do Observatório da Nova Lei de Licitações < http://www.novaleilicitacao.com.br/> Acesso em: 10/02/2021.

2 – Op Cit.

3 – Lei nº 14.133/2021 

4 – Idem

5 – ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. O que muda com a nova Lei de Licitações Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-abr-08/aldem-johnston-muda-lei-licitacoes> Acesso em: 08/04/2021.

6 – O procedimento de manifestação de interesse – PMI consiste em um instrumento propiciador da cooperação privada na construção do ato convocatório e anexos de um eventual procedimento licitatório, por meio do qual a administração pública, a partir da exposição de suas demandas, recebe estudos, levantamentos, investigações ou projetos que deverão, para fins de real aproveitamento, passar pelo crivo do ente demandante. O fundamento legal encontra-se sobretudo no art. 21 da Lei n° 8.987/1995, a Lei das Concessões. 

o PMI possibilita que a administração pública, reconhecendo sua limitação em, isoladamente, construir os documentos necessários que balizarão possível futuro certame e a contratação pretendida, realize chamamento público para o desenvolvimento de projetos, levantamentos, investigações ou estudos, por pessoa física ou jurídica de direito privado, com a finalidade de subsidiar a estruturação desses empreendimentos.


Referências

ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. O que muda com a nova Lei de Licitações Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-abr-08/aldem-johnston-muda-lei-licitacoes> Acesso em: 08/04/2021.

BRASIL, SENADO FEDERAL, Lei nº 14.133/2021

Observatório da Nova Lei de Licitações Disponível em: < http://www.novaleilicitacao.com.br/> Acesso em: 10/02/2021

Rodrigo Vieira das Neves de Arruda responde pela área de Regulatório e Energia do Escritório Pinheiro Pedro Advogados. Advogado formado pelo IBMEC – Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – RJ e Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP, é membro efetivo da Comissão de Direito da Energia da OAB/SP e professor dos Cursos de Especialização em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM). Foi assessor da Procuradoria Federal na ANP – Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Autor de várias obras publicadas, com destaque para o “Vade Mecum da Infraestrutur do Petróleo” e “Dicionário Jurídico do Petróleo” (ambos pela Ed. Riedeel – co-autor). Detentor do “Prêmio IBMEC de Excelência Acadêmica (2015).


Autor: Rodrigo Vieira das Neves

5 de dezembro de 2025
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, recentemente, decisão de grande relevância para o direito civil e para a prática da execução de dívidas. No julgamento do Recurso Especial n.º 2.195.589 , de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o Tribunal reconheceu a possibilidade de inclusão do cônjuge do devedor no polo passivo da execução de título extrajudicial , mesmo quando a dívida foi formalmente contraída apenas por um deles. O caso envolve casal casado sob o regime de comunhão parcial de bens , no qual o marido havia emitido cheques posteriormente levados à execução. Diante da inexistência de patrimônio em nome do devedor principal, o credor solicitou a inclusão da esposa no processo executivo, pedido inicialmente negado pelas instâncias inferiores. Ao analisar o recurso, o STJ reformou as decisões anteriores e fixou importante entendimento sobre responsabilidade patrimonial no casamento. O caso julgado: dívida contraída durante o casamento O processo tratava de cheques emitidos em 2021 pelo marido, enquanto casado desde 2010 sob o regime de comunhão parcial. Embora o título estivesse em nome exclusivo do emitente, o credor buscou a inclusão da esposa sob o argumento de que: · a dívida foi constituída durante a constância do casamento , · o regime de bens adotado pressupõe a comunicação do patrimônio adquirido no período , · e determinadas obrigações assumidas por um dos cônjuges podem beneficiar diretamente a economia do lar . As instâncias de origem rejeitaram o pedido, entendendo não haver responsabilidade automática da esposa por dívidas assumidas exclusivamente pelo marido. O STJ, contudo, deu provimento ao recurso do credor e autorizou a inclusão da cônjuge na execução. O embasamento jurídico da decisão A fundamentação da Ministra Nancy Andrighi se apoiou, principalmente, nos arts. 1.643 e 1.644 do Código Civil, que tratam da administração da economia doméstica e das responsabilidades financeiras assumidas no casamento. Presunção absoluta de consentimento Segundo a relatora, a legislação estabelece presunção absoluta de consentimento recíproco para obrigações assumidas por um dos cônjuges em prol da economia doméstica. Isso significa que, independente de outorga uxória ou anuência formal, o ordenamento presume que ambos participam e se beneficiam das despesas necessárias à manutenção da entidade familiar. Assim, a dívida contraída durante o casamento (ainda que em nome de apenas um dos cônjuges) pode atingir o patrimônio comum, especialmente quando relacionada a gastos inerentes à vida familiar. Responsabilidade solidária pela economia doméstica O art. 1.644 do Código Civil prevê que as obrigações domésticas vinculam solidariamente os cônjuges. A interpretação adotada pela 3ª Turma reforça a ideia de que, sempre que houver indício de que a dívida pode ter repercutido na economia comum, existe legitimidade passiva do outro cônjuge para integrar a execução. O que a decisão não determina Embora reconheça a legitimidade, a decisão não determina responsabilidade automática pelo pagamento. A inclusão do cônjuge: · não implica presunção de culpa ou participação direta na dívida ; · não autoriza, de imediato, a constrição de bens particulares ; · não impede que o cônjuge exerça defesa própria , como demonstrar que a dívida não beneficiou a família ou não guarda relação com o regime de bens. A relatora reforçou que caberá ao cônjuge incluído provar eventual incomunicabilidade de bens ou ausência de proveito comum, podendo opor embargos ou outras medidas de defesa. Impactos práticos da decisão A orientação firmada pelo STJ repercute diretamente em execuções de títulos extrajudiciais, especialmente naquelas em que: · o devedor não possui patrimônio em seu nome; · o casamento está vigente sob o regime de comunhão parcial; · há indícios de que a dívida foi contraída durante o matrimônio; · o credor busca ampliar as chances de satisfação do crédito. Para credores · A decisão fortalece a possibilidade de alcançar o patrimônio comum do casal , caso haja indícios de benefício à economia doméstica. · Também oferece uma estratégia adicional em execuções paralisadas em razão da inexistência de bens penhoráveis em nome do devedor principal. Para cônjuges incluídos · A inclusão no polo passivo pode gerar consequências como citação, necessidade de apresentação de defesa, eventuais bloqueios sobre bens comuns e análise detalhada do regime de bens. · Contudo, permanece assegurado o direito de comprovar que a dívida não possui qualquer relação com a vida familiar ou com o patrimônio comunicável. Para o sistema jurídico A decisão dialoga com precedentes anteriores, mas reforça e amplia o entendimento de que, no regime de comunhão parcial, a responsabilidade patrimonial pode alcançar o casal, desde que respeitados os limites legais da meação e da incomunicabilidade. A decisão da 3ª Turma do STJ representa importante marco interpretativo sobre responsabilidade patrimonial dos cônjuges em execuções de títulos extrajudiciais. Ao autorizar a inclusão do cônjuge no polo passivo, o Tribunal consolida entendimento de que o regime de comunhão parcial de bens produz efeitos não apenas sobre os bens adquiridos durante o casamento, mas também sobre determinadas obrigações assumidas nesse período. Em paralelo, mantém-se a garantia de ampla defesa, permitindo que o cônjuge incluído comprove a ausência de benefício à economia doméstica ou a incomunicabilidade de determinados bens.  Para operadores do Direito, especialmente aqueles que atuam em contencioso civil, família e recuperação de crédito, a decisão exige atenção redobrada ao regime de bens, ao histórico da dívida e às circunstâncias concretas de sua constituição.
Por Pinheiro Pedro Advogados 23 de outubro de 2025
Sancionada pelo Presidente Lula agora no mês de outubro, a Lei nº 15.228/2025, que institui o chamado Estatuto do Pantanal , é o primeiro marco legal federal voltado especificamente à conservação, restauração e uso sustentável desse bioma único. A matéria segue agora para sanção presidencial, marcando um passo histórico no arcabouço jurídico-ambiental brasileiro. Um vácuo jurídico que se encerra Apesar de o artigo 225 da Constituição Federal reconhecer o Pantanal como patrimônio nacional, até então inexistia legislação federal exclusiva que tratasse de sua proteção. A lacuna vinha sendo preenchida pela aplicação de normas ambientais gerais ou por legislações estaduais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa ausência gerava insegurança regulatória e dificuldades de harmonização entre as práticas produtivas, a conservação ambiental e o desenvolvimento socioeconômico. Em 2024, inclusive, o Supremo Tribunal Federal (STF) havia determinado que o Congresso legislasse sobre o tema, pressionando pela criação de um marco normativo específico. O que dispõe o Estatuto do Pantanal A nova lei inova ao estabelecer diretrizes próprias para o bioma. Entre seus principais pontos, destacam-se: · Uso sustentável e compatível : qualquer atividade econômica no Pantanal deverá atender a critérios de sustentabilidade, prevenindo a exploração predatória. · Manejo do fogo : a utilização do fogo passa a ser permitida apenas em situações específicas, como prevenção de incêndios, pesquisas científicas, manejo integrado e práticas culturais de comunidades tradicionais. Em todos os casos, é necessária autorização prévia do órgão ambiental competente e apresentação de plano de uso. · Selo “Pantanal Sustentável” : cria-se um mecanismo de certificação para bens e serviços produzidos de forma sustentável, inclusive em atividades turísticas, agregando valor econômico às práticas compatíveis com a conservação. · Financiamento e incentivos : o texto prevê o uso de recursos do Fundo Nacional do Meio Ambiente, doações e fundos patrimoniais para custear programas de conservação e pagamento por serviços ambientais. · Integração federativa : as metodologias e regulamentos já adotados por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul poderão ser aproveitados, evitando sobreposição de normas e valorizando experiências consolidadas. · Valorização cultural : reconhece o uso tradicional do fogo e práticas ancestrais de comunidades pantaneiras, respeitando sua identidade e modo de vida. Relevância jurídica e socioambiental A aprovação da lei representa não apenas um avanço regulatório, mas também um marco simbólico: é o reconhecimento, em nível federal, de que o Pantanal demanda tratamento diferenciado e normatização específica. Para o setor jurídico, a norma tende a reduzir conflitos de interpretação, já que muitas vezes atividades lícitas sob a ótica estadual esbarravam em entendimentos mais restritivos de normas federais gerais. Agora, o Estatuto confere maior segurança jurídica a empreendedores, comunidades e órgãos ambientais. Além disso, a criação do selo de certificação pode estimular cadeias produtivas sustentáveis, conectando conservação ambiental com ganhos econômicos. Do ponto de vista internacional, a medida também reforça a imagem do Brasil como país comprometido com a preservação de seus biomas, o que pode gerar reflexos positivos em acordos comerciais e ambientais. Vem desafio por aí! Apesar dos avanços, a efetividade da lei dependerá de fatores cruciais: 1. Estrutura de fiscalização : a legislação só terá efeito prático se houver capacidade de monitoramento, o que exige fortalecimento institucional nos estados e na União. 2. Recursos financeiros contínuos : sem repasses estáveis e planejamento orçamentário, os instrumentos de incentivo podem se tornar meramente declaratórios. 3. Harmonização normativa : será preciso compatibilizar as regras federais com legislações estaduais já vigentes, evitando conflitos de competência e sobreposição de obrigações. 4. Regulamentação detalhada : conceitos como “uso sustentável” e “manejo controlado” precisam ser devidamente definidos em regulamentos, sob pena de abertura para litígios e judicializações. 5. Participação social : a efetividade dependerá do envolvimento de comunidades tradicionais, produtores locais e entidades da sociedade civil, garantindo legitimidade e adequação às realidades regionais. Finalizando, podemos considerar que a criação do Estatuto do Pantanal encerra uma lacuna histórica e inaugura um novo ciclo de políticas ambientais para o bioma. Contudo, como ocorre em muitas áreas do direito ambiental, a distância entre a norma e a realidade prática ainda é significativa. Cabe ao Poder Público assegurar meios para a execução da lei e à sociedade civil acompanhar e fiscalizar sua implementação. Já ao setor produtivo e às comunidades locais, abre-se a oportunidade de alinhar desenvolvimento econômico com práticas sustentáveis, construindo um modelo de gestão que preserve o patrimônio natural e cultural pantaneiro. Em última análise, trata-se de um avanço normativo que precisa ser consolidado por meio de ação coordenada, financiamento estável e efetiva fiscalização , sob pena de transformar-se em um marco legal sem efetividade prática.
Por Pinheiro Pedro Advogados 23 de setembro de 2025
Em abril de 2025 foi sancionada a Lei nº 15.126, que acrescenta ao marco legal do Sistema Único de Saúde (SUS) o princípio da atenção humanizada. A norma representa um avanço no campo legislativo da saúde pública ao reconhecer, de forma expressa, que o atendimento ao paciente deve considerar não apenas aspectos físicos, mas também dimensões emocionais, subjetivas e sociais que compõem o cuidado em saúde. O que diz a lei A nova legislação altera a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), reforçando que os serviços do SUS devem ser pautados pela atenção integral e humanizada. Na prática, isso significa que o Estado assume o dever de assegurar que o tratamento não se limite à prescrição médica ou ao controle de sintomas, mas envolva também: acolhimento adequado às necessidades do paciente; respeito à dignidade e singularidade de cada indivíduo; valorização da escuta, do vínculo e da participação do paciente no próprio cuidado; promoção de políticas públicas que reconheçam a saúde como fenômeno biopsicossocial. Mudanças práticas Embora o princípio da humanização já estivesse presente em políticas do Ministério da Saúde — como a Política Nacional de Humanização (PNH) —, sua inclusão em lei fortalece o caráter jurídico da obrigação. Isso cria: maior respaldo legal para usuários do SUS que se sintam desrespeitados ou vítimas de atendimento desumanizado; parâmetro normativo para o Poder Judiciário em casos de litígios envolvendo negativa de atendimento, internações e tratamentos; obrigação mais clara para gestores públicos e profissionais de saúde no planejamento e execução dos serviços. Em especial na área de saúde mental, a lei reforça a diretriz da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001), garantindo que pessoas em sofrimento psíquico recebam tratamento digno, baseado em cuidado integral e não apenas em medidas medicalizantes ou hospitalares. Impacto nos planos de saúde privados Embora a Lei nº 15.126/2025 se destine diretamente ao SUS, seus efeitos podem ultrapassar o sistema público. Isso porque: Parâmetro interpretativo: princípios reconhecidos em lei costumam ser invocados pelo Judiciário como referência também para a saúde suplementar. Assim, pacientes de planos de saúde podem se valer do conceito de atenção humanizada em ações judiciais para exigir tratamentos mais abrangentes e respeitosos. Pressão regulatória: a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) pode, futuramente, adotar resoluções que alinhem os planos privados às diretrizes de humanização, acompanhando a evolução normativa do SUS. Proteção do consumidor: pelo Código de Defesa do Consumidor, operadoras de saúde devem prestar serviços adequados, eficientes e seguros. A incorporação do princípio da atenção humanizada ao ordenamento pode reforçar o entendimento de que a ausência de acolhimento digno configura falha na prestação do serviço. É bom refletir A inclusão do princípio da atenção humanizada no marco legal da saúde brasileira consolida uma tendência: reconhecer que o cuidado deve abranger corpo, mente e contexto social. Para pessoas em vulnerabilidade psiquiátrica, esse respaldo jurídico é ainda mais significativo, pois assegura a possibilidade de reivindicar atendimento digno e integral em momentos de fragilidade. No campo da saúde suplementar, embora a lei não imponha obrigações imediatas aos planos privados, cria bases para que a humanização se torne parâmetro também na iniciativa privada, seja por via judicial, seja por futuras normativas regulatórias. Neste Setembro Amarelo, quando se intensificam as reflexões sobre saúde mental e prevenção do suicídio, a sanção dessa lei ganha relevo adicional. Ela reafirma que o direito à saúde não se limita ao tratamento de doenças, mas envolve o acolhimento humano, a escuta atenta e a valorização da dignidade em todas as etapas do cuidado. Assim, a Lei nº 15.126/2025 não apenas fortalece o SUS, como também abre caminho para uma visão mais ampla e inclusiva do direito à saúde, em sintonia com os desafios contemporâneos da saúde mental e com a urgência de políticas públicas sensíveis à condição humana.